Guerra aos trabalhadores? O que há de errado com as leis laborais ao abrigo da lei marcial

O especialista ucraniano em relações laborais Vitaliy Dudin mostra como o governo do seu país utilizou o pretexto da guerra para impor medidas de emergência não justificadas que constituem um “neoliberalismo militar”.

Após 24 de fevereiro, à medida que a Ucrânia começou a sofrer com uma chuva mortífera de mísseis russos, os trabalhadores começaram a enfrentar uma crise sem precedentes. A continuidade do trabalho tornou-se arriscada em todos os sentidos da palavra [1]. Não era difícil prever a reação dos empregadores face aos novos desafios. De acordo com Olena Uvarova, uma especialista em direitos humanos e trabalho, as empresas colocaram a sobrevivência financeira em primeiro lugar.

Só no primeiro mês da guerra, 30% das empresas foram obrigadas a deixar de funcionar, o que significou a perda de rendimentos para milhões de pessoas, algumas mesmo sem um procedimento de despedimento adequado. Tornou-se mais difícil encontrar um emprego, uma vez que o número de vagas diminuiu significativamente. É difícil imaginar o aumento dos salários em atraso dado que esta questão não foi monitorizada na prática [2].

Dado o aumento das violações dos direitos laborais, foi anunciada uma medida governamental para desregulamentar temporariamente as regras de emprego e despedimento que ultrapassou largamente toda a experiência anterior na reforma da esfera social e laboral. Com estas medidas, os empregadores foram autorizados a cumprir apenas com o mínimo de responsabilidades para com os empregados. Em vez de aumentar a intervenção do Estado na economia [3], esta foi efetivamente auto-eliminada.

Estas mudanças na legislação das relações laborais não terão qualquer contrapartida e apoio económico para os trabalhadores mas darão todo o poder aos proprietários. Este modelo não surgiu devido a uma coincidência de fatores de emergência, mas decorre da ideologia neoliberal dos nossos políticos. Olhemos em seguida para as consequências destas medidas para os trabalhadores, seja durante seja após a lei marcial.

O fim do equilíbrio: como tudo começou

Quando cada minuto pode custar uma vida, os governos devem tomar decisões difíceis na defesa do interesse público, neste caso na defesa contra a invasão militar. Assegurar os direitos sociais durante uma guerra não é tarefa fácil. A guerra é a pior situação possível para o estabelecimento de elevados padrões nos direitos laborais. A questão do possível desvio das obrigações legais durante as guerras está "programada" no sistema de regulamentação internacional do trabalho. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), que surgiu das chamas da Primeira Guerra Mundial, tem algumas regras relativas à suspensão temporária das garantias laborais dos trabalhadores devido a uma guerra ou outras emergências [4].

Os Estados podem restringir os direitos das pessoas se isso ajudar a proteger o país como um todo. No entanto, a longo prazo, é benéfico para a sociedade manter condições de trabalho decentes. Afinal de contas, o curso da guerra depende da capacidade das pessoas comuns se alimentarem e poderem oferecer ajuda ao exército. Uma restrição dos direitos deve ser abordada com extrema cautela. O que vimos na Ucrânia?

Desde os primeiros dias da invasão, literalmente, muitos governantes proferiram diferentes declarações, dizendo que nada seria como antes. Estas declarações foram, na sua maioria, sobre a necessidade imediata de libertar os empregadores do fardo de obrigações que já não pareciam ser capazes de cumprir. A Câmara de Comércio e Indústria da Ucrânia descreveu a agressão armada da Rússia como uma força maior que isentava os empregadores da responsabilidade pelo atraso no pagamento dos salários. Ao mesmo tempo, o próprio direito ao salário ficou ameaçado.

A Inspeção do Trabalho suspendeu as suas atividades na sequência de uma moratória sobre inspeções imposta pelo Conselho de Ministros a 13 de março. Isto causou confusão: as pessoas não recebem salários, mas não podem reclamar junto do Serviço Estatal de Trabalho porque os inspetores pararam o seu trabalho em todo o país! Para piorar a situação, apenas os trabalhadores das regiões onde a ação militar está a ter lugar poderiam receber um subsídio de 6.500 grívnias1 [cerca de 208 euros] em caso de perda de rendimentos ao abrigo do programa governamental "eSupport".

Estas decisões foram, no mínimo, polémicas. No entanto, a adoção da Lei da Ucrânia “Sobre a organização das relações laborais na lei marcial” de 15.03.2022, № 2136-IX (Lei № 2136) foi um verdadeiro murro no estômago para os trabalhadores. A partir desse momento, começaram os verdadeiros problemas.

A tão esperada carta branca

A lei № 2136 permitiu a restrição de um conjunto excessivo de direitos constitucionais dos cidadãos ucranianos. Com que objetivo? O título da lei poderia levar a pensar que ela se destinaria a reforçar as capacidades de defesa do país. Mas, na realidade, ela foi concebida para proteger os interesses dos empregadores individuais [5], permitindo-lhes utilizar as disposições especiais dessa lei, que lhes são benéficas, em vez das normas do Código do Trabalho da Ucrânia (Código do Trabalho), mesmo sem referência direta a emergências (tais como ameaças militares ou hostilidades).

Praticamente todos os artigos da Lei contém disposições novas e chocantes:

  • Conclusão simplificada de contratos de trabalho a termo certo e contratos de trabalho com período experimental (artigo 2º);
  • Transferência de empregados sem o seu consentimento para outro emprego (artigo 3);
  • A possibilidade de alterar condições de trabalho importantes sem pré-aviso de dois meses (artigo 3);
  • Despedimento durante baixa por doença, remunerada e não remunerada, bem como sem o consentimento dos sindicatos (artigo 5);
  • Aumento da duração máxima da semana de trabalho para 60 horas, bem como a abolição dos limites do trabalho suplementar e a abolição dos dias de férias e dos dias de descanso semanal (artigo 6);
  • Levantamento da proibição de colocar mulheres grávidas em turnos noturnos, bem como mães com filhos pequenos em turnos noturnos e horas extraordinárias (artigos 8º, 9º);
  • Fim da responsabilidade do empregador por atraso de pagamento, se esta violação ocorrer em resultado de hostilidades ou outras circunstâncias de força maior (Artigo 10);
  • Suspensão unilateral pelo empregador de determinadas disposições da convenção coletiva (artigo 11º);
  • Redução da duração das férias anuais pagas para 24 dias de calendário; direito do empregador de recusar a licença ao empregado se este trabalhar em infra-estruturas essenciais (p. 12);
  • Suspensão do contrato de trabalho (artigo 13º);
  • Suspensão da legislação e das convenções coletivas, que previam deduções aos sindicatos para desporto e trabalho de massas (artigo 14º).

Com esta legislação, os empregadores (incluindo muitas empresas bem conhecidas) têm uma oportunidade para resolver os seus próprios problemas, por exemplo os que possam surgir devido à incompetência dos seus gestores. Os problemas das empresas tornaram-se o fardo dos trabalhadores, que já tinham problemas de sobra. A lei aprovada apressadamente careceu de segurança jurídica, mas na prática provou ser ainda pior: alguns empregadores nem sequer se preocuparam em colocar por escrito as suas orientações, limitando-se a expressar a sua vontade de classe através de aplicações de mensagens.

Num mercado de trabalho já caracterizado pelo termo "ditadura do empregador", enfraquecer ainda mais a proteção legal dos trabalhadores é extremamente perigoso. Este documento, segundo os especialistas, veio legitimar quer as práticas que surgiram sob a lei marcial quer as que já existiam na economia subterrânea.

Por exemplo, desde o início da guerra que a rede de laboratórios New Diagnostics anunciou a passagem da totalidade dos seus 600 trabalhadores a licença sem vencimento, mesmo sem declarações de consentimento por parte dos trabalhadores. Posteriormente, com esta lei, os legisladores permitiram (Artigo 13 da Lei № 2136) a suspensão do contrato de trabalho (que na prática equivale a essa licença) de forma unilateral.

Um segundo exemplo é dado pelo supermercado online Rozetka que, em fevereiro, anunciou aos trabalhadores que iria reduzir os salários para 80% do valor original, não cumprindo, ao abrigo do art. 3 da Lei № 2136, o prazo de dois meses de pré-aviso.

À primeira vista, a Lei № 2136 permitiu aos empregadores fugir a muitas obrigações mas ao mesmo tempo provou ser uma lei propícia ao conflito devido a inconsistências internas. É difícil aplicar categorias de avaliação previstas nesta lei, como por exemplo a "incapacidade de realizar o trabalho", uma vez que nenhum organismo estatal pode confirmar esta condição.

As normas sobre a obrigação dos sindicatos de promover a capacidade de defesa do país (a propósito, refira-se que os empregadores não são obrigados a fazê-lo) também podem ser interpretadas de forma ambígua. Mesmo um empregador que esteja de boa fé terá dúvidas: será necessário coordenar com os sindicatos as questões que não estão diretamente relacionadas com a capacidade de defesa? Se, para suspender contratos de trabalho com trabalhadores individuais, o proprietário deve fazê-lo por referência a determinadas circunstâncias, então a suspensão das regras do acordo coletivo de trabalho é desnecessária [6].

Algumas medidas duras, tais como o possível envolvimento das mães trabalhadoras em empregos com condições de trabalho penosas, o aumento necessário do horário de trabalho ou a abolição de jure dos feriados parecem completamente fúteis nas condições do mercado. Isto poderia fazer sentido numa economia planificada, mas não numa economia de mercado, onde nem todos os proprietários privados estão envolvidos na atividade de defesa.

Uma antevisão do futuro: as primeiras perdas

A Lei nº 2136 levou a mudanças negativas semelhantes aos problemas que os países com mercados de trabalho desregulamentados enfrentam, mas os seus efeitos podem ser ainda mais terríveis em tempo de guerra.

Em primeiro lugar, a flexibilidade não controlada aumenta a instabilidade económica. Quando a cessação ou suspensão de uma relação de trabalho é uma opção relativamente fácil, os empregadores tendem a abusar dela. Como resultado, o desemprego no país pode aumentar a um ritmo explosivo (embora a suspensão dos contratos de trabalho não afete formalmente a taxa de desemprego).

Em segundo lugar, o princípio da justiça social é violado. Num momento em que é necessário promover a sensação de "estamos todos no mesmo barco", os trabalhadores veem acontecer o oposto. Os seus empregadores podem, unilateralmente, tomar decisões em função dos seus interesses próprios, prejudicando os direitos dos seus empregados. A lei № 2136 declara explicitamente que, com suspensão dos contratos de trabalho, a compensação por perdas sofridas pelo trabalhador deve ser feita à custa da Rússia. Seria justo colocar estes custos a cargo do empregador ou do Estado, dado que serão eles a receber as reparações do Estado agressor.

Em terceiro lugar, existe uma ameaça ao capital humano, que já está a ser devastado pela guerra. Esta lei foi aprovada durante a lei marcial, mas poderá causar um golpe no emprego, com consequências muito mais duradouras. O artigo 5º permite que os trabalhadores sejam despedidos, ignorando as garantias de proteção contra o despedimento. Quantas pessoas perderão os seus empregos apenas devido a estas regras? É também possível despedir trabalhadores em caso de desacordo com alterações significativas das condições de trabalho sem cumprir o prazo de pré-aviso de dois meses [7]. A massa de empregados do Estado foi forçada a concordar com uma redução dos salários indefinidamente. Ao tomar conhecimento dessa "pechincha", os gestores de saúde, por exemplo, puderam realizar “reformas” nos hospitais de modo mais fácil, ou seja, prejudicar as condições de trabalho de enfermeiros, médicos e outros profissionais de saúde. Se as pessoas perderem a sua saúde e capacidades em resultado da perda dos seus empregos, é completamente inútil uma economia mais produtiva.

Em quarto lugar, as condições de diálogo social estão a deteriorar-se devido ao enfraquecimento dos sindicatos. Os sindicatos não receberão contribuições dos empregadores e as taxas de filiação cairão significativamente devido ao não pagamento de salários. Além disso, os sindicatos não podem proteger os membros contra o despedimento durante a lei marcial. Desta forma, os autores da iniciativa legislativa criaram uma série de incentivos para diminuir o número de sindicatos (através do despedimento de membros ou através do abandono voluntário). Esta lei, combinada com o processo de desindustrialização destrutiva, faz com que os sindicatos enfrentem uma perda colossal de filiados.

O único objetivo que esta lei pode alcançar é poupar dinheiro aos empregadores, libertando-os da obrigação de pagar o tempo ocioso, de indemnizar pelos salários em atraso e de fazer contribuições para os sindicatos. Mas será que estes fundos poupados foram utilizados para quaisquer fins socialmente úteis? Alguns poderão salientar que a Lei № 2136 foi aprovada para reduzir os custos salariais do orçamento do Estado. Mas, na realidade, esta lei não se aplica aos trabalhadores da administração publica.

A Lei № 2136 não se destinava a responder a questões novas ou únicas decorrentes da guerra. A lei laboral anterior já continha respostas para os empregadores em tempos de crise, mas não servia os interesses dos empregadores, pois exigiam custos ou recursos adicionais para os esforços organizacionais [8]. Uma vez mais, o capitalismo demonstra que é incapaz de assumir a plena responsabilidade pelo destino da população.

Desregulamentar de forma grave e permanente

Os empregadores habituam-se à facilidade com que conseguem lidar com situações difíceis por si próprios. É por isso que o parlamento já está a preparar o terreno para preservar a hegemonia dos proprietários durante o máximo de tempo possível. É a esta luz que o projeto de lei "Alterações a Certas Leis da Ucrânia sobre a Otimização das Relações Laborais" № 7251 (Projeto № 7251) deve ser visto.

É verdade que este projeto contém algumas propostas bastante razoáveis, como por exemplo:

  1. as regras sobre a suspensão dos contratos de trabalho tornar-se-ão menos convenientes para os empregadores. Tais decisões terão de ser acordadas com as administrações civis-militares. É reconhecido que o interesse público deve ser acautelado neste processo;
  2. A duração da semana de trabalho apenas poderá ser aumentada para 60 horas em infraestruturas essenciais;
  3. Os órgãos do Serviço Estatal do Trabalho poderão levar a cabo medidas não programadas de fiscalização do cumprimento da legislação laboral durante a lei marcial.

Terão os deputados decidido atenuar pelo menos uma parte das ameaças contidas na Lei № 2136? Não sabemos.

No entanto, em sentido oposto, o Projeto de Lei №7251, à semelhança de outras propostas de Galina Tretyakova, não está isento de disposições polémicas.

Em primeiro lugar, são acrescentados novos motivos de despedimento de um trabalhador por iniciativa do empregador, em particular o "despedimento em caso de incapacidade de proporcionar condições de trabalho devido à destruição de bens em resultado de uma ação militar" [9]. Trata-se de forçar os trabalhadores a pagar pelos problemas colocados pela guerra. Esta disposição configura, de facto, um despedimento do trabalhador, mas o período de pré-aviso será reduzido de dois meses para dez dias, sem necessidade de acordar o despedimento com o sindicato, e o despedimento poder-se-á efetuar mesmo que o trabalhador se encontre de baixa por doença ou em férias [10]. Podemos já imaginar que este mecanismo será utilizado por todas as empresas que tenham sofrido perdas, mesmo que parciais.

Em segundo lugar, as inovações no domínio do tempo de lazer são alarmantes. Prevê-se o cancelamento da autorização para pagamento de férias três dias antes do gozo da licença e a redução da duração, de 14 para sete dias por ano, das férias adicionais pagas aos combatentes. Diplomaticamente, esta última disposição nova foi classificada de “negociável” durante o tempo de guerra pelo principal departamento científico e de peritos do Parlamento [11].

Assim, o Projeto de Lei № 7251 deixa impressões contraditórias: ao mesmo tempo que enuncia o objetivo de eliminar as partes problemáticas da lei anterior, contém novas disposições que são claramente desfavoráveis aos trabalhadores.

A blitzkrieg anti-laboral e o fim inglório

O projeto № 5388 "Alterações a determinados atos legislativos da Ucrânia sobre a desregulamentação das relações de trabalho", preparado para segunda leitura em plena guerra, recebeu uma avaliação muito mais inequívoca. Tendo como objetivo eliminar formas obsoletas de documentação escritas, os promotores decidiram limpar a legislação de normas consagradas quer a nível internacional quer na Constituição ucraniana.

As normas que permitem impor os seguintes aspetos no contrato de trabalho poderiam prejudicar a proteção do trabalhador:

  1. a base do trabalho suplementar: as normas da OIT permitem que as autoridades públicas identifiquem tais casos [12]. É possível imaginar que violações de segurança são necessárias para fixar o excesso de trabalho, por exemplo nos transportes;
  2. a hora do início e do fim do trabalho diário ou a necessidade de pausas: de acordo com a prática estabelecida, o empregador deve definir estas regras num único procedimento para toda a empresa [13]. A Diretiva 2003/88/UE prevê a possibilidade de estabelecer exceções às regras sobre tempo de trabalho e tempo de lazer ao nível das convenções coletivas [14], mas não através de acordos individuais.

Estas disposições diminuem o papel dos sindicatos. Por exemplo, nas regras sobre despedimento o consentimento da comissão sindical para despedir um trabalhador sindicalizado foi substituído por um procedimento de consulta, juridicamente não vinculativo. Ao mesmo tempo, nos momentos de avaliar o despedimento de um trabalhador com base no seu comportamento, os sindicalistas tinham de abdicar do seu tempo de trabalho (!) sem direito a remuneração.

Algumas disposições poderiam ter sido consideradas neutras antes da guerra, mas neste momento causam uma tensão acrescida. Assim, foi prevista a utilização de contratos de trabalho a termo em vez de contratos permanentes para o emprego de trabalhadores dos meios de comunicação social, o que irá reduzir a proteção deste importante campo de trabalho. É também proposto permitir o estabelecimento de um período de experiência para pessoas dispensadas do serviço militar e deslocados internos [15] (Artigo 26 do Código do Trabalho). Parece que os autores estavam tão ansiosos por agradar aos empregadores que simplesmente começaram a ignorar a realidade.

É claro que as autoridades decidiram forçar a adoção desta iniciativa durante a lei marcial, quando os protestos são quase impossíveis e a atenção do povo está concentrada nos campos de batalha. E, a 21 de abril, o espaço de informação foi agitado pelas notícias: O projeto de lei № 5388 foi discretamente submetido a votação, mas recebeu apenas 187 votos. A manipulação feita anteriormente também não ajudou: no seu discurso, os responsáveis do Governo equipararam a não aprovação da proposta à sabotagem da recuperação económica. O discurso das autoridades tornou-se claramente mais emocional e esse constitui o formato de comunicação que foi recomendado no famoso plano de relações públicas para promover a liberalização da esfera laboral. Contudo, a votação mostrou que, numa democracia parlamentar, a luta contra a restrição neoliberal das liberdades é sempre possível.

Para sobreviver ao neoliberalismo militar

A experiência de desregulamentação laboral durante a guerra não é de todo inspiradora, mas merece análise. Milhares de trabalhadores ucranianos puderam sentir, por experiência própria, como são as relações laborais livres. No entanto, a perceção destas mudanças como um "mal necessário" em termos de proteção contra o invasor de certo modo atenuou os malefícios dessa situação. O desejo dos cidadãos de vencer a guerra mesmo à custa do seu próprio bem-estar é merecedor dos maiores elogios. Embora seja mórbido que alguns membros do governo e empregadores pensem que a paciência do povo é ilimitada.

Poderá o caminho percorrido pelo governo ucraniano ser considerado único? De modo algum. Em 1992, durante o sangrento conflito na Bósnia-Herzegovina, foi aprovada a Lei das Relações Laborais em Guerra ou em Ameaça Iminente de Guerra. De acordo com a descrição no site da OIT, esta lei especial era semelhante em conteúdo à Lei № 2136 adotada na Ucrânia. Impunha também restrições às licenças, previa situações excecionais que isentavam os empregadores do pagamento de salários, bem como definia as condições para a cessação temporária do emprego. Mas a Bósnia e Herzegovina não são um exemplo bem-sucedido de política anti-crise: a flexibilização das circunstâncias para os empregadores em nada ajudou a impedir o rápido crescimento do trabalho não declarado e do desemprego [16].

É possível existir uma alternativa às políticas laborais neoliberais durante a guerra? Sim, se o aparelho estatal for mais eficiente e dotado de mais recursos. Os resultados seriam diferentes se o Estado supervisionasse uma suspensão temporário das regras em determinados locais de trabalho ou usasse fundos orçamentais para compensar os empregadores. Em vez disso, os responsáveis governamentais decidiram dar aos empregadores uma margem de manobra completa, ignorando os riscos para o desenvolvimento sustentável. O diálogo social como meio de tomada de decisão foi simplesmente retirado da agenda. Tudo isto cria as condições para uma crise de emprego que poderá dificultar o crescimento económico, tanto numa perspetiva de curto como de longo prazo.

Por último, há que reconhecer que, já antes da guerra, a manutenção da lei laboral tal como estava constituía uma grande vitória para a classe trabalhadora. Podemos imaginar as quantidade de violações que ocorria devido a instrumentos ultraliberais, como por exemplo os contratos de trabalho de 0 horas ou despedimentos sem justa causa. O futuro da economia depende da confiança dos trabalhadores no futuro e da recuperação da procura interna. O pré-requisito para isso é a proteção dos direitos laborais.

A Ucrânia não é um país onde os custos salariais sejam onerosos para a economia. O abandono de garantias legais remanescentes só pode causar declínio, nunca recuperação económica. A guerra atual pode atenuar alguns dos inconvenientes, mas precisamos de pensar no futuro após a guerra. Recentemente, os responsáveis ucranianos implementaram um conjunto de medidas necessárias para a adesão à UE. No próximo ano, serão tomadas medidas para avaliar a conformidade da Ucrânia com as normas europeias, em particular no domínio dos direitos humanos.

Talvez seja altura de pensar nos benefícios de garantir o direito a condições de trabalho decentes. Quanto mais cedo os políticos ucranianos deixarem de lutar contra a proteção laboral com a desculpa do crescimento económico, mais cedo chegará a paz e a justiça social.

Notas

[1] De acordo com o Serviço Estatal do Trabalho da Ucrânia, desde o início do ano registaram-se mais de 120 mortes no trabalho. Aproximadamente 80% das mortes registadas após 24 de fevereiro de 2022 foram causadas por invasores russos.

[2] É difícil estimar atualmente o crescimento dos salários em atraso, pois a última vez que o Registo de Devedores foi atualizado na página do Serviço Estatal do Trabalho data de 14 de fevereiro de 2022.

[3] Acredita-se que as ameaças militares criam as condições para o reforço do planeamento controlado pelo Estado na economia (Schönfelder B. The Impact of the War 1991-1995 on the Croatian Economy - A Contribution to the Analysis of War Economies. Working Papers de Freiberg. Vol. 14. 2005. Pp.1-2).

[4] Ver Art. 14 da Convenção sobre a limitação do horário de trabalho nas empresas industriais a 8 horas por dia e 48 horas por semana, № 1 (1919); Art. 9 da Convenção sobre a Regulamentação do Tempo de Trabalho no Comércio e nas Instituições, № 30 (1930); Art. 4 (2), da Convenção sobre a Limitação do Trabalho Noturno de Crianças e Adolescentes em Obras Não-Industriais, № 79 (1950). Disposições semelhantes incluem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 4º), a Carta Social Europeia (artigo F, Parte V) e o Acordo de Associação com a UE (artigo 472º).

[5] A nota explicativa dizia que a lei tinha como objetivo assegurar um equilíbrio entre a redução das despesas dos empregadores e a manutenção de um mínimo de direitos e garantias necessárias para os trabalhadores.

[6] Tais disposições novas contradizem pelo menos o Acordo de Associação com a UE, que no Art. 291 prevê o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva.

[7] Isto viola as regras do art. 4 da Carta Social Europeia, que reconhece o direito de todos os trabalhadores a um período razoável de pré-aviso de despedimento.

[8] Exemplos são as regras sobre a transferência de trabalhadores de empresas que não trabalham ou o pagamento de tempo de inatividade (artigos 34º, 113º do Código do Trabalho).

[9] Ver parte 6, item 1, estabelecido pelo Projeto de lei № 7251 do Art. 41 do Código do Trabalho.

[10] Ver emendas ao art. 41, 43-1, 49-2 do Código do Trabalho.

[11] "... dado o seu papel em repelir a agressão armada da Federação Russa, assegurando a defesa da Ucrânia, protegendo a população e os interesses do Estado" (Conclusão da GNEU de 18.04.2022).

[12] Ver Art. 6 da Convenção sobre a limitação do horário de trabalho nas empresas industriais a 8 horas por dia e 48 horas por semana, № 1 (1919); Art. 7 (2), 8 da Convenção sobre a Regulamentação do Tempo de Trabalho nas Empresas e Instituições, № 30 (1930); Art. 9 (1) da Convenção da Organização Internacional do Trabalho № 153 sobre o tempo de trabalho e os períodos de descanso no transporte rodoviário (1979).

[13] Ver. Art. 8 (1) da Convenção sobre a limitação do tempo de trabalho nas empresas industriais a 8 horas por dia e 48 horas por semana, № 1 (1919); Art. 11 (2) da Convenção sobre a Regulamentação do Tempo de Trabalho no Comércio e nas Instituições, № 30 (1930).

[14] Como previsto no projeto № 5388, a duração e as condições da pausa podem ser determinadas por um contrato de trabalho escrito, mas isto é contrário ao Art. 4 Diretivas. Assim, o Art. 18 da presente diretiva permite derrogações às regras também baseadas em convenções coletivas celebradas por sindicatos a nível de empresas ou indústrias.

[15] Ao mesmo tempo, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações, 91% dos deslocados internos enfrentam dificuldades em encontrar emprego.

[16] No início dos anos 2000, ambos os números atingiram 40%, o que foi considerado demasiado grave mesmo para as economias em transição. Em 2001, a percentagem de desempregados e de pessoas que ficaram "temporariamente" desempregadas em resultado da guerra e à espera de reintegração foi estimada em 40-50%.