Juntos no desastre: uma política social para uma reconstrução justa da Ucrânia

A invasão russa aconteceu num país com uma segurança social depauperada fruto do neoliberalismo, uma história de trinta anos de reduções de gastos na esfera social, privatizações e declínio da infraestrutura social pública. A sua reconstrução terá de passar por uma reinvenção do Estado Social.

A guerra atingiu amargamente toda a população da Ucrânia. Muitas pessoas perderam os seus empregos e deixaram as suas casas. De acordo com a sondagem de setembro passado, realizada pelo grupo sociológico Rating, apenas 61% dos ucranianos permaneceram nos seus empregos, 36% dos quais trabalhavam a tempo inteiro [1]. De acordo com estimativas do Banco Mundial, em agosto de 2022, cerca de 817.000 edifícios residenciais foram danificados, 38% dos quais sem possibilidade de serem reparados. Por outras palavras, milhões de ucranianos acabaram numa situação de vulnerabilidade.

A guerra colocou à beira do limiar de sobrevivência uma parte significativa das pessoas que pertenciam às categorias vulneráveis e mal protegidas da população. Além disso, algumas infraestruturas sociais foram danificadas ou destruídas [2]. A carga de trabalho das instituições que prestam serviços sociais aumentou tremendamente devido ao fluxo de pessoas deslocadas. O sistema de proteção social também está sobrecarregado, especialmente neste contexto da escassez de receitas orçamentais. Portanto, o apoio social não é apenas uma questão prioritária, mas está a ser também, por assim dizer, questionado.

Neste artigo, irei definir as tendências observadas na política social ucraniana nos anos anteriores à guerra, uma vez que demonstram a visão do governo sobre a política de apoio social. Em seguida, considerarei as propostas existentes do Estado no campo da política social e analisarei a política por detrás dessa visão. Finalmente, esboçarei as abordagens alternativas à política social do pós-guerra e as razões pelas quais a política social é essencial para a reconstrução.

Proteção social durante a guerra

O sistema de proteção social ucraniano não estava preparado para um desafio como uma invasão em grande escala. Em julho, o plano de recuperação da proteção social ucraniana foi apresentado em Lugano. Os seus autores atribuem esta situação à obsolescência e à “sovietização” do sistema de proteção social ucraniano: seria excessivo e prometeria aos cidadãos benefícios que o Estado não pode garantir na prática.

Sem dúvida que todos os governos colocam o ónus dos problemas nos seus antecessores. No entanto, porque recorrer a um passado tão distante como a União Soviética quando há uma história de trinta anos de reduções de gastos na esfera social, privatizações e declínio da infraestrutura social pública? Ao mesmo tempo, é óbvio que as autoridades atuais não têm intenção de se desviar desse rumo.

Desde o início da guerra em grande escala, que o governo anunciou e implementou várias medidas para estabilizar o bem-estar das pessoas. Mas muitas levaram à redução dos direitos laborais e dos direitos dos sindicatos, limitando a possibilidade de receber o subsídio de desemprego. Por exemplo, os desempregados inscritos passam a ser contratados para realizar serviços comunitários [3] com pagamento não inferior ao salário mínimo se não conseguirem emprego durante 30 dias. No entanto, aqueles que se recusarem a servir a comunidade perderão o estatuto de desempregados e o pagamento de benefícios.

Além disso, o governo anunciou o desenvolvimento do Código Social, destinado a “inventariar informações sobre as obrigações existentes para pagamentos sociais do Estado” e alinhá-las com as capacidades financeiras do Estado. Além disso, a Lei 2620 liquidou o Fundo de Segurança Social. O Fundo de Pensões recebeu o seu orçamento e parte das funções enquanto as suas despesas e funcionários foram significativamente reduzidos. Portanto, o funcionamento do sistema de segurança social é um grande problema.

Uma parte significativa das medidas tomadas pelo governo durante a guerra, e propostas no projeto de plano de recuperação, não são apenas, e nem tanto, justificadas pelos desafios que a própria guerra traz. Elas são uma continuação do rumo político que já está a ser seguido há muito tempo no campo da política social (bem como em áreas afins, por exemplo, na saúde). Tal rumo político chama-se (há várias décadas) neoliberalismo. Mas não falemos da própria ideologia do neoliberalismo. Em vez disso, sugiro delinear os traços neoliberais em determinados programas políticos.

Um velho inimigo do neoliberalismo

O que é normalmente conhecido como estado de bem-estar ("welfare state") é um velho inimigo e alvo do neoliberalismo. As políticas sociais europeias surgiram e prosperaram precisamente no pós-guerra. Ainda assim, na década de 1970, a crise do petróleo e a recessão económica fizeram com que representantes da ala neoliberal reclamassem dos “altos” gastos com programas sociais e apoio à população que estariam a diminuir o ritmo de crescimento económico.

A história da política social na Ucrânia tem origens diferentes da do resto do Ocidente. No entanto, na década de 1990, embarca na economia de mercado. A recessão económica da primeira década de independência e a privatização em grande escala levaram imediatamente à redução dos gastos na esfera social e à deterioração da infraestrutura social, especialmente nas áreas rurais. Por exemplo, as duas primeiras décadas de independência trouxeram uma diminuição no número de jardins de infância em quase dois terços. Ao mesmo tempo, doadores e credores internacionais encorajaram a redução dos gastos orçamentais na esfera social (ou, como é frequentemente formulado, o “uso eficaz de recursos”). A globalização e a busca por investidores também se tornaram num outro incentivo para tentativas sistemáticas de limitar os direitos laborais e garantias sociais, bem como criar condições fiscais mais atrativas para as empresas reterem o capital.

Do universalismo ao apoio aos mais pobres

Como foi a trajetória neoliberal na esfera social ucraniana? Por um lado, assenta em intenções de redução das despesas com a proteção social; por outro, mudar a própria natureza da política social.

Como funciona a redução de gastos? Para obter uma prestação, deve-se comprovar a necessidade de auxílio, ou seja, comprovar o seu rendimento. No entanto, o limiar de rendimento é muito baixo.

Por exemplo, consideremos as condições de identificação de uma família como sendo de baixo rendimento para que receba assistência. A partir de novembro de 2022, para obter ajuda financeira, uma família de dois adultos e uma criança menor de seis anos deve declarar que o rendimento médio mensal total, nos últimos seis meses, é inferior a 29.474 hryvnias (cerca de 4.912 hryvnias por mês, perto de 125 euros) [4]. Além disso, não é apenas o rendimento que afeta a decisão de ajudar, mas também outros fatores. Por exemplo, a resposta pode ser negativa se um ou ambos os adultos não trabalharam, estudaram a tempo inteiro, ou não tenham estado empregados nos últimos três meses. As medidas de controlo são muito rígidas para que aqueles que não têm direito à assistência não a recebam.

Além disso, têm ocorrido reduções nos programas sociais existentes. Como já foi mencionado, o governo pretende modificar as obrigações sociais do Estado existentes para reduzir tudo o que supostamente “não corresponde às possibilidades financeiras”. Também anunciaram uma “transformação do sistema extensivo de pagamentos sociais à assistência social universal”, que passará a ser direcionada aos mais pobres. Este novo rumo de proteção social deixa de oferecer, por exemplo, auxílio financeiro a todas as mães solteiras. Em vez disso, apenas aquelas que passam no teste de rendimento – as mais pobres – receberão esse auxílio. Portanto, de facto, os cidadãos estão a ser gradualmente privados de quaisquer direitos universais de apoio.

Em termos de alterações na própria natureza da política social, verificam-se tentativas de substituição das entidades prestadoras de serviços sociais e do seu regime de financiamento. Assim, a reforma de 2019 visa criar um mercado de serviços sociais, com instituições privadas prestadoras de serviços, contestando as estatais e as municipais. No entanto, o Estado deve financiar os serviços prestados às suas custas, não da instituição. Portanto, segue a lógica da reforma do sistema de saúde, na qual o dinheiro vem com o paciente e os hospitais se transformam em empresas que para existir têm de ganhar dinheiro.

Podemos encontrar as mesmas propostas no campo da atribuição de pensões. O esboço do plano de reconstrução e o comité especializado da Verkhovna Rada chamaram à reforma deste sistema “necessidade objetiva”, não se apressando em implementá-la antes da guerra. Trata-se de abandonar o sistema solidário de segurança social em favor de um sistema misto, introduzindo planos de segurança social individuais e privatizando parcialmente a segurança social.

Resumindo, para além da redução do financiamento, tudo se transforma em fonte de lucro.

Além disso, enquanto, supostamente, não há fontes financeiras para sustentar o sistema de segurança social, ninguém fala em aumentar a tributação dos lucros das grandes empresas, introduzindo uma taxação mais progressiva. Pelo contrário, em tempo de guerra, o Estado faz concessões às empresas, nomeadamente no domínio fiscal. Ao mesmo tempo, a carga tributária sobre os funcionários não muda. Ou seja, a reprodução social da força de trabalho que as empresas usam depende cada vez mais da própria força de trabalho.

Solidariedade ou individualismo?

Porque é que este rumo é perigoso? Na maioria dos Estados com uma política social desenvolvida, parte dos programas de apoio variam de acordo com o nível de rendimento do beneficiário. No entanto, a questão é qual a quantidade de bens públicos (ou, como dizemos – serviços) que está disponível para todos os cidadãos como um direito universal, independentemente do seu rendimento. Por exemplo, em termos de garantia de acesso gratuito a creches, escolas e serviços de saúde, pagamentos de subsídios à infância, etc.

Quanto menos universais são os vários programas de assistência do governo, mais próximos eles estão de apoiar apenas os mais pobres e menos apoio eles costumam ter entre os contribuintes. Por exemplo, se apenas os mais pobres têm direito à assistência, a pessoa média pode sentir-se sem qualquer esperança em receber ajuda, mesmo que a sua situação seja difícil. Então, qual a razão para pagar contribuições para a segurança social por algo com o qual não se pode contar? As pessoas estão menos dispostas a investir em algo do qual provavelmente não obterão nenhum benefício. Assim, no futuro, os gastos com a proteção social naturalmente diminuirão ainda mais. Isso significa que o número de programas de suporte ativos também diminuirá.

Além disso, uma tal abordagem estigmatiza os beneficiários, pois parece que estes se encontram desligados do resto da sociedade. Estar sob pressão máxima para entrar no mercado de trabalho o mais rápido possível também pode encorajar os destinatários a concordar com qualquer emprego sob quaisquer condições. Aprofunda ainda mais a sua insegurança – desta vez, no local de trabalho. As pessoas que não podem entrar no mercado de trabalho por vários motivos são apresentadas como uma peste e como dependentes, já que os demais contribuintes não recebem nada do Estado mas de qualquer maneira têm que sustentá-los.

Devido à redução gradual do financiamento estatal, a qualidade dos serviços públicos fornecidos pelas instalações comunitárias e estatais pode diminuir. Portanto, as pessoas mais ricas estão menos inclinadas a usar estes serviços, preferindo os privados: escolas, centros médicos, asilos, etc. Os prestadores de serviços públicos e os seus utilizadores são ainda mais estigmatizados. Por fim, os apoios às despesas com o Estado de bem-estar estão a diminuir: afinal, porquê financiar algo que “nós” não usamos e que é de qualidade inferior?

Do ponto de vista político, as mudanças estruturais, e tectónicas, na consciência política, são perigosas. Refiro-me à individualização dos riscos sociais pela limitação do leque de beneficiários. Os planos de pensões individuais, em que o bem-estar de uma pessoa depende essencialmente do sucesso dos seus investimentos em bolsa, são um modelo ilustrativo desta tendência. Como resultado, uma pessoa associa-se a negócios, um investidor, e não a concidadãos. Isto mina o sentimento de apoio intergeracional e leva à individualização da consciência social quando todos estão sozinhos, e o Estado só ajudará no pior dos casos.

É este o tipo de sociedade a que aspiramos, especialmente depois da guerra? Porque devemos mover-nos em direção a uma maior individualização e atomização enquanto experimentamos uma unidade sem precedentes?

A política social de uma sociedade solidária

A guerra influenciou toda a gente, mas alguns sofreram perdas desproporcionalmente maiores, por exemplo, as pessoas que já estavam em situação difícil. Para eles, os problemas apenas se intensificaram e sobrepuseram-se. Então, como superar esta situação e desenvolver uma sociedade unida e solidária?

Seria justo exigir maior taxação e redistribuição dos rendimentos para implementar políticas sociais generosas e programas de proteção social universal. Não há outra forma eficaz de apoiar aqueles que perderam as suas casas e empregos. Não devemos apenas solidarizar-nos face ao exército inimigo, mas também internamente, entre nós. Caso contrário, a nossa força coletiva esgotar-se-á, pois cada um se irá concentrar na sua própria sobrevivência.

Não se trata apenas de visões políticas sobre o que a nossa sociedade pode ser. Há também considerações pragmáticas por trás disto. Sociedades igualitárias com políticas sociais generosas, onde todos concordam em contribuir para o bem comum e obtêm benefícios posteriores, são mais felizes, saudáveis e estáveis. Após a guerra, não devemos permitir a instabilidade política interna. Questões económicas, de sobrevivência e de vida digna podem aprofundar as divisões sociais. Isto aplica-se também à reintegração dos territórios atualmente ocupados e, sobretudo, aos territórios ocupados desde 2014. Uma política social generosa e universal pode tornar-se um dos instrumentos de consolidação e reintegração social daqueles que vivem há anos em áreas fora de controlo.

A política social, como um sistema de apoio apenas aos mais pobres, não conseguirá enfrentar os desafios da guerra e da reconstrução do pós-guerra sem levar ao aumento da desigualdade e à atomização da sociedade. Precisamos de uma política social universal e solidária que abranja todos os grupos e que proporcione condições mínimas de vida digna para todos. Tal sistema pode ajudar as pessoas a sentirem-se incluídas numa rede de solidariedade social com a qual podem contar.

Notas

[1] De acordo com a sondagem, as pessoas deslocadas internamente, as mulheres que residem nas regiões do Leste, e os mais pobres do Leste, estão mais expostos à perda de empregos. A sondagem é representativa da população adulta da Ucrânia. Não inclui residentes de territórios ocupados temporariamente e residentes de áreas sem comunicação móvel ucraniana no momento da sondagem. Portanto, podemos assumir que a situação geral é ainda pior.

[2] Os analistas do Banco Mundial estimaram em 164,4 milhões de dólares os danos causados à infraestrutura de proteção social ucraniana (pensões, instituições de prestação de serviços sociais à população, etc.). Em agosto, 56 desses edifícios foram danificados ou destruídos. Além disso, 64 dos mais de 470 centros de atendimento do Fundo de Pensões sofreram danos significativos, bem como 19 dos 158 escritórios do Fundo de Segurança Social.

[3] O serviço comunitário é defensivo ou serve para eliminar emergências.

[4] É um direito das famílias cujo rendimento médio mensal total dos últimos seis meses seja inferior ao mínimo de subsistência. Em 2022, este mínimo representa 45% do mínimo de subsistência estabelecido para esta categoria; para pessoas que perderam a capacidade de trabalho e pessoas com deficiência –100%; para crianças – até 130%. Por exemplo, a partir de julho, para uma pessoa apta, o nível mínimo de subsistência é 1.170 hryvnias por mês ou 29 euros (45% de 2.481 hryvnias); para crianças menores de seis anos – 2.861 hryvnias ou 71 euros.