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O lóbi dos patrões, através do ex-presidente georgiano Saakashvili, redige legislação que permite o livre despedimento e impõe contratos individuais de trabalho à margem das leis laborais existentes. Com direitos de contestação restringidos e apostados na ajuda humanitária, os sindicatos ucranianos têm poucas condições de resistir.
A semana passada, o Parlamento ucraniano deu luz verde ao avanço da lei 5371 que pretende desregulamentar as leis de trabalho do país. Esta irá fazer com que, na prática, todas as pessoas que trabalhem em empresas que empreguem até 250 trabalhadores, o que corresponde a mais de 70% da força de trabalho da Ucrânia, deixem de estar abrangidas pela legislação de trabalho existente, passem a ter de negociar contratos individuais de trabalho e possam ser despedidas livremente pelos patrões.
Uma lei que vai assim no mesmo sentido da orientação pró-patronal da legislação de exceção adotada em março que limitou a capacidade de representação dos sindicatos, introduziu a figura da “suspensão de emprego” (que implica que a empresa deixa de pagar salários e o trabalhador deixa de estar em funções apenas por decisão patronal) e permitiu aos patrões suspender unilateralmente e sem prestar contas os acordos coletivos de trabalho.
A situação de guerra foi assim aproveitada por muitas empresas para praticar abusos laborais. Para além da suspensão dos acordos coletivos de trabalho, ocorreram alterações injustificadas das condições de trabalho e várias outras violações das leis laborais em vigor. Para denunciar este tipo de práticas, o Movimento Social, organização da esquerda ucraniana, publicou uma “lista negra” com os nomes das empresas que têm mantido este tipo de práticas contra os direitos dos trabalhadores. Desta constam por enquanto cerca de duas dezenas de empresas, entre as quais algumas das mais importantes do país como a central nuclear de Chernobyl, a empresa ferroviária ucraniana, o porto de Odessa ou o metro de Kiev.
Saakashvili, o ex-presidente georgiano liberalizador que tem sido o testa de ferro dos patrões ucranianos
A proposta de uma nova legislação laboral definitiva já não se apoia no pretexto dos tempos de exceção mas nos objetivos de “liberalizar” e des-sovietizar” as leis de trabalho existentes. É assinada por vários deputados do partido do presidente Zelenski, chamado o “Servo do Povo”, mas a verdadeira força por detrás dela é o Office of Simple Solutions and Results, uma “organização não governamental” que se apresenta como “a força executiva do Conselho Nacional de Reformas da Ucrânia – um corpo especial de aconselhamento na alçada do Presidente da Ucrânia sobre planeamento estratégico, coordenação de posições sobre a implementação de uma política de reformas de Estado unificada e a sua implementação”.
Num relatório de atividades elaborado em janeiro do ano passado, a organização não esconde as suas orientações: “encaminhamos diretamente problemas empresariais aos altos funcionários do estado e resolvemo-los através de mudanças institucionais no país” e “protegemos os interesses dos empresários no interior do Estado do próprio aparelho de Estado”. Já o “Conselho Nacional de Reformas” é um órgão oficial criado pelo presidente ucraniano. À frente dele e desta “ONG” está o ex-presidente da Georgia, Mikheil Saakashvili, que a fundou com o apoio das associações empresariais e do programa dos EUA USAID.
Saakashvili, atualmente está preso na Georgia por abuso de poder e com um estado de saúde muito deteriorado depois de duas greves de fome, aplicou durante a sua presidência uma receita liberal dura de privatizações e despedimento em massa na Função Pública, reprimiu adversários políticos e conduziu uma política pró-ocidental.
Depois de perder a presidência da Georgia, tentou a sua sorte política na Ucrânia. Foi nomeado pelo presidente Petro Poroshenko governador do Oblast de Odessa e obteve nacionalidade desse país, fundou um partido sem grande sucesso eleitoral, depois de ter cortado com Poroshenko foi-lhe retirada a nacionalidade. Quando Zelensky, de quem é apoiante, ganhou a presidência, recuperou outra vez a nacionalidade ucraniana.
A “máquina de reformas” pró-patronais não se limita às leis de trabalho e conta com mais de cinco dezenas de propostas em diferentes fases de elaboração: privatizações, reforma fiscal, reforma aduaneira, liberalização, são algumas das áreas a que se dedica. Os autores da lei 5371 alegam que é preciso acabar com “os métodos desatualizados, economicamente inadequados, de regulação estatal das relações de trabalho” que seriam herdados dos tempos da União Soviética. E, para além dos novos contratos individuais de trabalho contra a contratação coletiva e da carta branca para os despedimentos, pretende-se “reduzir o fardo burocrático que pesa sobre as relações laborais e a empresas.”
Um regresso ao século XIX
O Open Democracy recolheu depoimentos de quem contraria esta retórica. Vitaliy Dudin, especialista em legislação laboral e membro do Movimento Social, diz que a lei representa “um regresso ao século XIX” porque volta a colocar nas leis de trabalho o princípio de que as duas partes, trabalhador e patrão, seriam iguais, ignorando assim posição vantajosa do empregador. Segundo ele, isto “pode abrir a caixa de Pandora”, introduzindo ainda mais aspetos nocivos dos que já nela estão abertamente contemplados.
Também George Sandul, advogado da Labor Initiatives, uma organização de defesa dos direitos dos trabalhadores, receia esta ofensiva anti-laboral concretizando que, com os novos contratos individuais, “qualquer coisa pode ser introduzida sem qualquer referência às leis do trabalho ucranianas”. Para além disso, a “neutralização do papel dos acordos coletivos” vai relegar os sindicatos” para um papel muito secundário.
Um ataque injusto para um movimento dos trabalhadores que resiste à invasão
Este ataque aos direitos dos trabalhadores chega num momento em que os sindicatos terão dificuldade em reagir. Para além de todas as limitações à possibilidade de contestação, porque devido ao estado de emergência greves e manifestações estão proibidas, os sindicatos ucranianos estão totalmente investidos no apoio humanitário. Por exemplo o KVPU, a Confederação de Sindicatos Livres da Ucrânia, mostra como está na linha da frente a fornecer ajuda humanitária e sanitária às populações.
Uma recente conferência internacional em Lviv deu a conhecer mais facetas desse trabalho dos sindicatos ucranianos. Um dos participantes, o sindicalista britânico Tom Harris, compilou para o New Politics alguns dos testemunhos que ouviu. Por exemplo, Oleksandr Skyba, do Sindicato Livre dos Trabalhadores Ferroviários e Construtores de Transportes, que “descreveu como o trabalho dos sindicatos está centrado em manter os seus membros vivos – deslocando abastecimentos humanitários, salvando trabalhadores em perigo, fornecendo comida e apoio ao muitos trabalhadores ferroviários que estão agora a lutar nas unidades de defesa territorial e nas forças armadas”.
Por outro lado, Yurii Samoilov, dirigente de um sindicato mineiro da cidade de Kryvi Rih, foi um dos muitos que “assinalou como é claro para os trabalhadores que as suas organizações independentes tinham poucas possibilidades de sobrevivência sob ocupação russa”, “aludindo ao esmagamento total do sindicalismo e de todas as formas de sociedade civil independente nos regimes fantoches russo em Donetsk e Lugansk”. Isto foi corroborado por Serhii e Oksana, sindicalistas da saúde em zonas ocupadas pelos russos que foram obrigados a deixar os seus sindicatos e receberam ordens para aderir aos russos.
O Movimento Social, por seu turno, salientou que, ao mesmo tempo que este ataque aos direitos dos trabalhadores acontece, o governo de Zelensky cortou nos impostos das grandes empresas e exige a restituição dos direitos retirados aos trabalhadores.
A declaração aprovada nessa Conferência salienta isso mesmo: “o povo da Ucrânia está a ser atingido por reformas adotadas no interesse dos mais ricos, antes e mesmo durante a guerra. Estas decisões políticas fazem com que o fardo da guerra pese sobretudo sobre a maioria da população. Exemplos disso são a redução das garantias de direitos laborais para os trabalhadores e a redução de impostos para os empresários. Estas mudanças são acompanhadas por uma crescente redução na esfera social, o que cria condições insuportáveis para o povo da Ucrânia afetado pela guerra”.