Resistência e movimento social num país em guerra: diário breve de uma viagem à Ucrânia

Chegados de manhã, Kiev é uma capital europeia como qualquer outra. A cidade funciona, não há avisos de ataques aéreos, a linha da frente parece distante. A app só pinta a vermelho algumas das zonas mais a leste. Perceberemos que à noite é diferente e que nem todos os dias são assim.

A guerra numa app

O comboio noturno que liga Przemýsl na Polónia, a Kiev, na Ucrânia, está lotado de famílias deslocadas. Sobretudo mulheres e crianças. Há as que partem, as que regressam, as que estão de visita. Os homens entre os 18 e os 60 anos não podem sair do país. Dos 40 milhões de ucranianos, a guerra obrigou à deslocação de quase 15 milhões. Há quem seja refugiado noutros países europeus e quem esteja deslocado internamente. Estes estatutos, como se percebe rapidamente, não são estanques.

Para embarcar, há que atravessar primeiro a fronteira polaca. Filas de gente, comboios de gente, na rua, ao frio, já noite. No regresso, de madrugada, serão temperaturas negativas e ainda não chegou o inverno. Há mães e avós com ar exausto, crianças que choram e outras que não dizem uma palavra. Muitas malas. Não é um filme. É o quotidiano de fronteira do país em guerra.

Existe uma app (há sempre uma app) que informa dos ataques aéreos. Na plataforma do comboio há quem olhe para o mapa da app para ver o que está pintado a vermelho, mas ter na palma da mão o mapa dos ataques de drones e mísseis não ajuda à viagem. Aqui, não há abrigo. Resta confiar. O comboio, hão-de explicar-nos, não tem sempre o mesmo percurso. Percebemos também que, mesmo sem nenhuma paragem, às vezes fica parado algum tempo. Às vezes, viajamos depressa. Quem conseguir dormir na carruagem cama terá aproveitado melhor o seu tempo. São mais de 10h de viagem e os comboios, quase sempre, cumprem os horários.

Antes de Lviv o comboio pára e entra a guarda fronteiriça ucraniana. A responsável da carruagem acorda os passageiros, antes dos militares virem recolher os passaportes. Ficamos à espera, os passaportes são finalmente devolvidos e seguimos. O que acontecerá a quem não for autorizado a seguir viagem? Ficamos sem saber. No regresso, repete-se tudo, mas os militares acrescentam uma pergunta: levam armas? Não, não levamos.

A vida não espera pelo fim da guerra

Chegados de manhã, Kiev é uma capital europeia como qualquer outra. A cidade funciona, não há avisos de ataques aéreos, a linha da frente parece distante. A app só pinta a vermelho algumas das zonas mais a leste. Perceberemos que à noite é diferente e que nem todos os dias são assim. Por enquanto, vamos ao hotel, tomamos banho e pequeno almoço, acertamos a agenda pesada do dia e seguimos para Bucha na minivan com cara de muitos milhares de quilómetros e onde se lê “turistas”. É meia hora de caminho e será preciso sair do centro de Kiev para ver militares na estrada e sucata de material de guerra na berma.

Em Bucha recebem-nos duas responsáveis da autarquia que tratam do acolhimento às pessoas deslocadas internamente. Já receberam dezenas de delegações como a nossa. Repetem o recado: não se pode esperar pelo fim da guerra para começar a reconstrução e para ajudar as pessoas. Temos milhares de deslocados, alguns desde o início da guerra em 2014. Muitos mais se juntaram depois da invasão em larga escala de 2022. Dependemos em absoluto do apoio internacional direto; o que vai para o governo serve o esforço de guerra. Precisamos de casas, de enfermeiros e psicólogos, de energia, de painéis solares. Só depois, falam do massacre que povoou telejornais.

Levam-nos à igreja onde têm o memorial e as fotografias. Elas também são dali. Aqueles corpos são os seus vizinhos, família. Explicam que foram mortos por soldados russos que não teriam mais de dezoito anos. No memorial, apontam-nos as idades de quem morreu. Numa das filas, os nomes do bebé com um ano e do homem a um ano de fazer cem anos. Nada faz sentido. Bebés e velhos assassinados por miúdos. A fúria monstruosa das armas 1.

Há árvores altas e um enorme mural pela paz. Está um vento gelado. Sabemos que povoações vizinhas viveram a mesma violência e ocupação. Seguimos ao encontro de quem ficou, ou voltou, para apoiar. No caminho, vemos as casas-contentor que são a única oferta de habitação pública na Ucrânia. Há pessoas deslocadas a viver assim há dez anos (e outros tantos invernos). Sobretudo as mais velhas, mais doentes, mais pobres. Quem não pode sair do país, nem arranjar trabalho.

Cuidar no Estado sem Estado Social

Voltamos à estrada e à normalidade aparente. Subitamente, casas destruídas pelas bombas com um sinal: aqui mora gente. Pessoas sentadas em bocados de muro. Mais à frente, num bairro habitacional, descobrimos o nosso próximo encontro. Numa cave, fica a sede da associação de cuidados paliativos. São nove mulheres, profissionais de saúde, que apoiam mais de mil doentes e as suas famílias. Distribuem oxigénio, camas articuladas, cadeiras de rodas, fraldas. Servem doentes idosos, oncológicos, vítimas de covid longo, feridos de guerra. Explicam assim a sua função: o governo trata dos que podem sobreviver. Nós tratamos dos outros. Toda a gente tem direito a dignidade no fim da vida.

A presidente da associação já esteve nos combates da linha da frente, depois regressou. Também aqui há uma frente. Será a única organização que nos diz que não conta com apoio internacional. Afinal, ninguém quer falar de quem está a morrer. Vivem da solidariedade da comunidade, de donativos locais: o soldado que foi para a frente e quer ter a certeza que alguém apoiará os pais, a mãe que tem o filho na frente e quer assegurar apoio quando regressar ferido.

De regresso a Kiev, almoçamos com equipas de cinema apanhadas pela guerra em Mariopol. Fugiram no último momento, antes do cerco total. Trabalhavam com comunidades excluídas. Falam do projeto sobre as pessoas ciganas, que continua em curso. Explicam que hoje usam o seu cinema para angariar fundos e apoiar o esforço de guerra. Apoiam pequenas fábricas artesanais que produzem equipamentos de proteção com recurso a impressoras 3D. Os seus filmes passam em festivais e sessões um pouco por todo o mundo e eles participam em conversas com o público, por videoconferência. Em Portugal, nunca exibiram nenhum filme. Vão ter um novo, no próximo ano.

Preocupa-lhes a desinformação no país. Querem que saibamos que a Ucrânia tem mais do que uma língua e que ser russófono não é ser russo nem ser menos ucraniano. Mesmo que agora, como reação à invasão, haja quem tenha optado por falar só ucraniano. Querem que saibamos que os homens que fogem da guerra não são apoiantes de Putin. São só homens com medo da guerra e da morte e que isso é o mais humano que existe. Querem que, mesmo no meio da guerra, não se apaguem as zonas cinzentas nem se desista de pensar no que é difícil. E querem casas. Será isso que mais vezes ouviremos: precisamos de casas. As pessoas que fogem da frente, não têm onde morar. Não haverá nenhuma conversa sem que se fale da  dificuldade em encontrar casas. A privatização de toda a habitação pública ucraniana nos anos 90 tornou-se um pesadelo.

Do pessoal humanitário ao Movimento Social Ucraniano

Seguimos a pé do restaurante até aos escritórios da Fundação Rosa Luxemburgo. A cidade é bonita, tudo está calmo. O edifício que nos recebe é acolhedor e instalamo-nos numa sala ampla com grandes janelas. Ninguém pensa no risco dos ataques aéreos.

Reunimos com a maior organização não governamental presente na linha da frente. São responsáveis pela evacuação das populações. Trabalham com financiamento da ONU e em colaboração com o governo e as forças armadas ucranianas. As evacuações são feitas exclusivamente por ONGs. Explicam que há muita resistência, sobretudo das pessoas mais velhas. Recusam sair de casa até terem combates à porta. Só aceitam ser evacuadas quando já é tudo muito difícil. Os drones russos não poupam o pessoal humanitário. Como explicará a responsável da missão da ONU, com quem reuniremos no dia seguinte, a Rússia informou que não reconhece as notificações relativas à deslocação de pessoal humanitário.

Com mais de 5 milhões de pessoas deslocadas internamente, este passou a ser um dos maiores desafios da sociedade ucraniana. Conhecemos juristas de outra grande ONG, que se dedica a tentar encontrar casa (o mais difícil), trabalho e cuidados de saúde a quem fugiu da frente. Têm experiência de muitos anos no terreno; apoiavam refugiados de todo o mundo, hoje apoiam estes refugiados internos. São cada vez mais; a Rússia tem avançado na frente de combate.

Saímos já noite, passeio a pé até ao restaurante. Teremos de jantar e voltar para o hotel antes do recolher obrigatório. Quando chegamos, mostram-nos onde fica o abrigo aéreo. Será lá que acabaremos por nos reencontrar pouco antes das 4h da manhã. Os avisos de ataque aéreo saem das colunas dos corredores dos hotel e das apps dos telemóveis. No parque de estacionamento subterrâneo, transformado em camarata, podemos voltar a dormir. Voltar para os quartos, já só para pegar na mala e sair.

A segunda manhã em Kiev será sempre acompanhada pelas sirenes de ataque aéreo. Sucessivas, até ao início da tarde. Mas a cidade continua a trabalhar. Além da app, toda a gente segue canais de Telegram para saber com mais precisão o que se passa. Como me explicou uma mãe na noite anterior, mesmo durante a noite, só vão para o abrigo se ouvirem os drones por perto. Sabe do risco, mas o cansaço manda mais.

O embaixador português em Kiev aparece cedo no hotel para um café e troca de ideias. Não é usual a deslocação de eleitos em missão não oficial, mas a diplomacia portuguesa não deixa de acompanhar e os avisos aéreos não alteram o que estava combinado. Ao longo do dia, ouviremos algumas explosões mas mantemos a agenda. Faremos como quem ali vive.

A sede do Movimento Social Ucrâniano está cheia. Vieram membros de toda a Ucrânia, mesmo de regiões da linha da frente. Ouvimos sindicalistas, estudantes, movimentos estudantis, LGBTQI+, feministas. Explicam-nos os seus dois objetivos: combater Putin e combater o neoliberalismo e a oligarquia corrupta na Ucrânia. Não há aqui nenhuma contradição. Uma ocupação russa é poder aos fascistas e oligarcas.

A nova líder do Movimento Social Ucrâniano apresenta-se como sindicalista e mãe. Tem o filho a combater na linha da frente. O marido, mineiro, morreu num acidente de trabalho. Aponta o dedo a um regime que manda para a guerra os trabalhadores, mas não lhes dá voz na condução do país. Fala dos direitos laborais e sindicais suspensos pela Lei Marcial e denuncia que a guerra tem as costas largas; atacar os direitos de quem trabalha é o projeto político do regime e é muito anterior à guerra. Pede mais apoio militar para a Ucrânia, o perdão da dívida pública do país e mais apoio político para a esquerda e o sindicalismo livre ucranianos.

Os debates difíceis e a intersecção das lutas

O debate sobre o apoio à Ucrânia não é simples para esta delegação. Convergimos sobre a importância de caminhos diplomáticos para a Paz, de sanções eficazes contra o regime russo e optamos, em cada encontro, por falar abertamente sobre as diferentes posições dos partidos que representamos em relação ao apoio militar. Os nórdicos apoiam até o uso de armamento de longo alcance em território russo; explico que o Bloco apoia a defesa da Ucrânia mas é contra ataques em território russo pelos riscos de escalada nuclear e por recusar a guerra por procuração; a nova liderança do Die Linke fala da sua posição de princípio antimilitarista. Os nossos interlocutores, quase invariavelmente, sentem-se confortados pela posição nórdica. Mas em nenhum caso rejeitam o debate ou atacam posições diferentes. O Movimento Social Ucrâniano, que está agora a tentar constituir-se como partido, declara a vontade de se juntar à nova Aliança da Esquerda Europeia.

Acabamos por ter de sair algo apressadamente. Um dos membros no Movimento explica que os ataques aéreos estão mais próximos. Mas, antes de sair, muitas fotografias e vídeos. Alguns dos dirigentes terão de ficar de fora; as perseguições - organizadas e não organizadas - são reais. Como nos explicará um investigador, já durante o almoço, a extrema-direita formou muitos jovens. Conseguiu financiamento público para trabalho supostamente pedagógico nas escolas e recrutou. Hoje, com os mais velhos na linha da frente, há ataques violentos protagonizados por miúdos que ainda nem têm idade para serem criminalmente responsabilizados.

A extrema-direita está organizada dentro das forças armadas. Já não tanto no famoso Batalhão Azov, mas ainda concentrada num dos batalhões do exército. Os seus símbolos são populares e confundidos símbolos de resistência da Ucrânia. E, claro, têm apoio internacional. Como já percebemos pelas conversas que vamos tendo, até para garantir meias ou botas adequadas aos soldados é preciso redes de solidariedade informal. As redes ativistas antifascistas também recolhem apoios nacionais e internacionais para os seus soldados na frente de combate. Numa das T-Shirts que vendem pode ler-se: “Estou lentamente a despir-te de milénios de opressão patriarcal”. Por aqui, a intersecção das lutas é um dado adquirido.

Os avisos de ataques aéreos páram. A cidade continua a funcionar, como sempre, e nós fazemos uma última ronda de reuniões de regresso ao escritório da Rosa Luxemburgo. Conhecemos os estudantes que lutam para que a idade de mobilização não desça e para não os obriguem a trocar a faculdade pela guerra; o sindicato de enfermeiras que organizou uma greve ilegal e garantiu aumento de salários em plena guerra; o movimento LGBTQI+ que recusa a mercantilização da marcha do orgulho. Ouvimos a responsável da ONU sobre o apoio humanitário e os enormes riscos do inverno que se aproxima. Percebemos que não há dados sobre o que se passa nos territórios ocupados.

De regresso

A viagem foi organizada pela Fundação Rosa Luxemburgo, a fundação da esquerda alemã e que tem uma delegação na Ucrânia. Participam Aliança de Esquerda da Finlândia, Aliança Vermelha e Verde da Dinamarca, A Esquerda da Alemanha, Bloco de Esquerda de Portugal, Partido da Esquerda da Suécia. Uma delegação internacional a sete línguas que, em boa parte, só se conheceu durante a viagem. É no comboio de regresso que apontamos alguns caminhos comuns de futuro.

Sentamo-nos dez pessoas, num compartimento para quatro, com os sacos do jantar e latas de cerveja. As diferenças entre nós são claras, mas também é o que nos une. Solidariedade com a autodeterminação, compromisso com o direito internacional, recusa da NATO como solução. E a enorme vontade de apoiar uma esquerda nova, distante dos equívocos saudosistas, capaz de mobilização e articulação de lutas na mais difícil das circunstâncias. O compromisso de apoio ao Movimento Social Ucraniano é imediato. Segue-se o trabalho conjunto no Parlamento Europeu sobre sanções ao governo russo e uma conferência europeia, sobre a Paz e a reconstrução, que faremos na próxima primavera.

A viagem terminou no dia 3 de novembro, domingo. Na terça-feira seguinte, Trump venceu as eleições nos EUA. Putin aumentou os ataques contra infraestruturas essenciais da Ucrânia. Joe Biden decidiu autorizar a Ucrânia a usar mísseis de longo alcance contra a Rússia, o que sempre tinha recusado. Escalar para desescalar, explicam para quem queira acreditar. Recordo a frase de um dos investigadores com quem reunimos: quando será e o que será a Paz ninguém sabe. Muito menos se durará.

Notas:

1. O verso de Wilfred Owen que dá nome ao livro Monstrous Anger of the Guns. How the Global Arms Trade is Ruining the World and What We Can Do About It, editado com o apoio do Peace and Justice Project de Jeremy Corbyn.