O campismo protege-nos da guerra?

1. Raízes históricas do campismo

O campismo não começou com a guerra fria

O campismo tem uma história antiga e intensamente interligada com situações de opressão e morte de muitos milhões. Vale a pena recuar quase um século. Embora a origem do campismo esteja normalmente associada aos tempos da Guerra Fria e do confronto entre dois “campos” – a URSS e os EUA -, na realidade podemos, historicamente, encontrar raízes um pouco mais antigas, desde os tempos do triunfo do estalinismo e da subjugação e subserviência de uma parte importante da esquerda internacional aos interesses da burocracia soviética. De notar que a 3ª Internacional intervinha diretamente na vida dos partidos comunistas nela filiados que, por sua vez, dependiam do estado soviético para o seu financiamento.

Essa fidelidade total e acrítica em relação à URSS teve consequências trágicas de vários pontos de vista. A esmagadora maioria dos Partidos Comunistas de todo o mundo aceitaram os processos de Moscovo (ou de Praga, ou outros). Qualquer crítica (interna ou externa) era considerada um ataque mortal ao comunismo e essas vozes foram etiquetadas de agentes do imperialismo ou do fascismo.

Nesses processos foram mortos em todo o mundo mais comunistas e revolucionários pela URSS e pelos seus braços armados do que pelo próprio nazismo.

De muitos casos trágicos, o pior terá sido o pacto (de não-agressão) germano-soviético. Assinado em 26 de Agosto de 1939, o Pacto Hitler-Estaline (ou Ribbentrop-Molotov) propunha-se dividir o leste europeu em zonas de influência da Alemanha ou da URSS. A propaganda soviética “vendia” o pacto germano-soviético como uma medida para alcançar a paz. O chamado movimento comunista internacional ficou completamente desorientado, a guerra não foi evitada e o que se seguiu foi uma imensa catástrofe.

A partição da Palestina e a  criação do Estado de Israel

Outro exemplo que vale a pena assinalar é o do apoio da URSS e de Estaline à resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1947 sobre a partição da Palestina e subsequente criação do Estado de Israel. Estaline acreditava que uma aliança com Israel poderia contrabalançar o alinhamento político de alguns dos países da região (Egito, Jordânia e Iraque) com o império britânico. Além disso, a criação do Estado de Israel iria certamente levar muitos judeus soviéticos a emigrar para Israel, o que agradava sobremaneira a Estaline – para quem os judeus eram uma minoria de que não desdenhava livrar-se.

Acresce que a Checoslováquia foi um dos maiores fornecedores de armas às milícias sionistas que combateram o exército britânico ainda mandatário da Palestina, e que depois expulsaram os palestinianos de suas casas no Nakba. Os interesses particulares da geopolítica do Kremlin sobrepuseram-se ao direito à auto-determinação do povo palestiniano.

Não é de espantar que, mais tarde, as revoltas que surgiram em vários países da esfera soviética (Berlim 1953, Budapeste 1956, Praga 1968, Polónia 1981) tenham sido brutalmente esmagadas pelos tanques de Moscovo, e que os partidos comunistas tenham apoiado essa repressão. O caso da invasão da Checoslováquia em 1968 não conseguiu gerar tanta unanimidade e teve consequências mais drásticas, levando mesmo à saída de muitos militantes comunistas.

2. O alargamento do campismo na era da globalização

Voltemos então a tempos mais próximos, da globalização neoliberal e conservadora surgida no pós queda do muro de Berlim e do colapso da ex-URSS. Numa época de fortes tensões geopolíticas e de guerra permanente, considerar que existe um só imperialismo, o dos EUA, não só é errado como anacrónico. É também perigoso porque ao considerar que “o inimigo do meu inimigo é automaticamente meu amigo”, o campismo atua e determina a sua estratégia pelos interesses dos governos e não dos povos. A estas posições junta-se a esquerda que veio da tradição do estalinismo mas também, infelizmente, alguma esquerda oriunda de tradição anti-estalinista. Procuraremos ilustrar com dois exemplos, a Síria e a Ucrânia.

Guerra na Síria – um crime de proporções gigantescas

A onda de protestos e de levantamentos populares que varreu o norte de África em 2011 (Tunísia, Egito) chegou também à Síria onde houve uma rebelião popular contra o regime opressor de Bashar-el-Assad, por melhores condições de vida mas sobretudo pela libertação de presos e pelas liberdades democráticas. A insurgência foi apelidada de contrarrevolução e os revoltosos foram brutalmente reprimidos pela polícia e pelo exército sírio, com o apoio direto e concreto da Rússia. A Rússia de Putin não se limitou a enviar conselheiros políticos e militares ou a fornecer armamento, foi cúmplice ativa do massacre de centenas de milhares de sírios e da transformação da Síria num campo de ruínas.

Houve nuances nas reações da “esquerda ocidental”. Uma certa esquerda foi incapaz de compreender a dinâmica das primaveras árabes e alinhou com a sua repressão. Para essa esquerda, em última análise, os povos são apenas marionetas nas mãos do imperialismo e não são capazes de ser agentes de revolta e determinar o seu destino.

Outros argumentaram com a não-ingerência em “assuntos internos da Síria”, alegando que o levantamento popular foi fabricado pelos EUA e que a repressão do regime sírio foi uma resposta legítima à “ingerência imperialista”. Era preciso escolher entre Assad e o ISIS (Estado Islâmico), que na verdade só se fortaleceu na Síria depois da brutal repressão contra o levantamento popular. A esquerda internacionalista que se opôs a Assad foi minoritária mas corajosa: solidarizou-se com o levantamento popular e contra a repressão do regime.

A guerra da Ucrânia foi um teste à esquerda

A invasão da Ucrânia pela Rússia em Fevereiro 2022 veio mudar a política, a geopolítica e as alianças. Surgiu num momento em que o imperialismo norte-americano, embora hegemónico, tinha sofrido uma perda significativa no Afeganistão em 2021. Estava abalado. Nada melhor do que  o pretexto da avançada russa para o Ocidente para fazer soar os tambores da guerra, para a União Europeia e os EUA terem espaço político para venderem a ideia da ameaça de uma guerra generalizada e da necessidade de uma nova corrida aos armamentos, mesmo que isso signifique sacrifícios nos salários e nos serviços sociais e o prolongamento de uma guerra sem fim à vista.

Há também matizes dentro da esquerda campista que apoia a invasão russa: uns afirmam que não houve exatamente uma invasão, mas sim uma operação especial do Kremlin para antecipar a suposta ofensiva iminente da NATO sobre a Rússia. Outros acrescentam que a revolta de Maidan em 2014 foi o prenúncio da fascistização do regime de Kiev e que os tanques do Kremlin mais não fizeram do que salvar a Rússia (e a Ucrânia) do fascismo. Caracterizam o regime de Kiev como fascista ou amigo de fascistas, ocultando que Putin é amigo de Trump, interferiu nas eleições americanas e apoia e dá alento e albergue às extremas-direitas mundiais, de Milei a Marine Le Pen, passando por Orbán.

Há ainda os que aceitam que se trata de uma guerra inter-imperialista. O slogan “Nem NATO nem Putin” pode parecer muito apelativo mas é profundamente errado. Não se trata de uma guerra inter-imperialista ou por procuração, mas da invasão pela Rússia de um país soberano e independente que outrora pertenceu à URSS e antes disso ao império russo. Aliás Putin foi absolutamente claro nesta matéria: o direito à independência da Ucrânia consagrado pelos bolcheviques foi um erro crasso. O direito à auto-determinação do povo ucraniano é simplesmente ignorado e espezinhado.

Ao focarem-se nos governos e na geopolítica, os campistas esquecem as forças concretas no terreno. Pouco lhes importa se existem na Rússia sindicalistas, coletivos ativistas contra a guerra, feministas, LGBT e outros. É tudo gente a soldo do imperialismo. Não só ignoram como caluniam os grupos de ativistas ucranianos que resistem à ocupação ao mesmo tempo que se opõem às políticas neoliberais do governo Zelensky. Organizações como o Movimento Social Ucraniano são ignoradas ou mesmo vilipendiadas, porque não encaixam no puzzle de uma Ucrânia que pretendem monoliticamente fascizante.

Ao contrário do que é pr

oclamado pelos apoiantes de Putin, apelar à Paz em abstrato ao mesmo tempo que se apoia a invasão da Ucrânia não contribui de modo nenhum para que as armas se calem. Apenas descredibiliza o movimento antiguerra. Falar de Paz em abstrato pode significar apoiar o opressor. Como se pode falar de Paz na Ucrânia sem exigir, à cabeça, a retirada das tropas russas? A esquerda campista, ao alinhar com a invasão russa da Ucrânia, está ao mesmo tempo a enfraquecer o movimento anti-imperialista. É difícil ser credível na luta contra o imperialismo americano se se foi omisso ou mesmo conivente com o imperialismo russo e se se deixou a oposição à invasão praticamente nas mãos dos belicistas de sempre.

3. O internacionalismo é a única vacina contra o campismo

O Bloco de Esquerda e algumas outras esquerdas europeias demonstraram que era possível ter uma posição de solidariedade ativa com o povo ucraniano, exigir a retirada das tropas russas e um plano de paz, ao mesmo tempo que denunciava e se opunha com todas as forças à escalada militarista bélica da NATO e dos vários países europeus.

A esquerda internacionalista opõe-se à invasão, exige a retirada das tropas russas, ao mesmo tempo que procura estabelecer laços de solidariedade com os movimentos que tanto na Ucrânia como na Rússia se põem à invasão. A esquerda internacionalista sabe que a solidariedade não se constrói com os governos mas sim com os povos oprimidos.

Anticapitalista #79 – Março 2025