Guerra e paz

A paz entre Trump e Putin não é paz. É partilha colonial, preparação de novas guerras. Isso nem sequer é escondido pelos próprios. O que não significa que um eventual cessar-fogo não seja justamente sentido como um alívio pelos povos, especialmente russo e ucraniano.

1. Os acontecimentos das últimas semanas, relativos à guerra na Ucrânia e ao seu possível fim através de negociações entre os EUA e Rússia, são de uma importância transcendental. Dizem respeito a toda a ordem mundial de estados, logo, a todos os povos e todas as esquerdas. Tentar ter uma compreensão correta e uma resposta internacionalista a estes eventos é absolutamente determinante para o futuro. O centro de gravidade da política emancipatória regressa ao terreno internacional ao qual se tendem, cada vez mais, a subordinar os aspetos domésticos. Não há como fugirmos a isso.

2. Discutiu-se, nos últimos anos, nas esquerdas, se a Rússia seria uma potência imperialista e se, a sê-lo, seria de ordem regional ou global. A resposta foi dada por Trump e a sua equipa. A Rússia é reconhecida pela (ainda) potência imperialista hegemónica global, os EUA, como um par. A Rússia é imperialista e a sua história, recursos, a extensão das suas fronteiras e a dimensão e potência do seu armamento não lhe permitem resignar-se a uma escala regional. A guerra da Ucrânia e o seu provável fim através de uma partição colonial entre Rússia e EUA consagram o estatuto do gigante de Leste. A Rússia é um poder imperialista de apetência global. Agora, isso expressa-se nas negociações com os EUA; no futuro, tenderá a expressar-se pela competição e, eventualmente, pelo confronto. Uma potência global vê-se empurrada a lutar pela hegemonia, mesmo quando é economicamente secundária face aos seus competidores diretos. O facto de isso ser totalmente irracional não nega que seja uma tendência. A irracionalidade do capitalismo está na sua natureza e é a brecha para a sua superação.

3. Se a revelação deste estatuto russo pode abalar concepções arraigadas, mais abalado fica o lugar da Europa no mundo. Aqui sim, é evidente um downgrade de um bloco que se cria um player global para o estatuto de potência regional. Ou mesmo periférica. O significado histórico desta queda é enorme: o imperialismo nasceu na Europa. Agora, esmaga-a. A própria ideia de “bloco Europeu” assentava na assunção de que, unidos, os eternos rivais europeus manteriam um status global. Isso acabou. Poderá manter-se a “Europa” daqui por diante? Não se verá atravessada por competição, choques e alianças cruzadas e contraditórias dos seus atores maiores com as potências externas – EUA, Rússia, China? A perda de estatuto terá reflexos económicos (já está a ter, não é isso a recessão alemã?); daí nascerá a agitação social. Como sempre, os choques entre Estados abrem as comportas da luta de classes. É por aqui o caminho das esquerdas europeias: nem chorar nem festejar o esvaziamento do imperialismo europeu. Menos ainda, alinhar com quimeras que, sob motes europeístas, alimentam a tentativa desesperada de manter a UE como relevante na partilha do mundo. Nós somos mesmo é contra a partilha do mundo. Não há exércitos europeus, dívida comum para compra de armas ou dissuasão nuclear pan-europeísta que nos valham. São utopias reacionárias, inexequíveis, presas à voragem imperial da guerra – a morte das esquerdas, portanto.

4. A paz entre Trump e Putin não é paz. É partilha colonial, preparação de novas guerras. Isso nem sequer é escondido pelos próprios. O que não significa que um eventual cessar-fogo não seja justamente sentido como um alívio pelos povos, especialmente russo e ucraniano. Só a cegueira militarista pode levar a que alguém de esquerda lute contra o eventual calar das armas. Contudo, isso não é o mesmo que silenciar, por um minuto que seja, a denúncia da partilha colonial da Ucrânia por Trump e Putin. A paz que queremos é sem anexações, espoliação de recursos e ocupação militar. Essa não é uma possibilidade imediata, dirão os “pragmáticos”. De facto não é: é uma posição de princípio; e são os princípios que abrem caminhos de futuro. Que na Ucrânia se calem as armas, mas não o internacionalismo, o anti-imperialismo, o direito à autodeterminação dos povos.