Ella Rossman
A investigadora e ativista russa Ella Rossman regressa à história recente do feminismo russo para mostrar como se tornou uma força decisiva na resistência contra a guerra.
Desde o início da guerra em grande escala na Ucrânia e no seguimento do estabelecimento de uma lei marcial de facto na Rússia, os russos têm vindo a protestar contra a guerra. Apesar deste protesto ser fraco, fragmentado e exposto à repressão governamental, continua a acontecer em muitas cidades e vilas da Rússia. Inclui não apenas manifestações de rua e piquetes mas também formas invisíveis de resistência como sabotagem no trabalho e diferentes formas de distribuição de informação sobre a guerra em luta contra uma censura severa.
É já evidente que as mulheres estão muito ativas neste movimento. Um dos primeiros grupos russos anti-guerra, que surgiu logo no segundo dia da guerra, foi organizado pelas feministas – a Resistência Feminista Anti-Guerra, a qual estou feliz de integrar. Esta coordena um canal de Telegram que junta mais de 29.000 ativistas de toda a Rússia e de fora do país. A sua ação no Dia Internacional das Mulheres, organizada em memória dos ucranianos mortos na guerra, uniu 112 cidades, vilas e aldeias na Rússia e noutros países.
Não são apenas as ativistas feministas que estão a protestar. Mulheres com todo o tipo de posições políticas participam nas manifestações e piquetes. Mulheres eleitas localmente apresentaram-se como opositoras à guerra. A 16 de março, Helga Pirogova, a política da oposição liberal e deputada municipal em Novosibirsk, foi trabalhar com uma coroa de flores e camisa vyshyvanka com as cores da bandeira ucraniana. Este pequeno gesto causou grande escândalo na Assembleia – outros deputados começaram a agredi-la verbalmente e propuseram que lhe fosse retirado o seu mandato. Nina Belyaeva, deputada do Conselho Distrital de Semiluksky na região de Voronezh Region, condenou a guerra numa reunião daquele órgão em 22 de março. Classificou publicamente as ações das autoridades russas de “crime de guerra”. Foi imediatamente expulsa do Partido Comunista da Federação Russa e agora um gabinete da Procuradoria local está a ponderar apresentar queixa contra ela. Há muitos outros exemplos como estes. E surgem a cada dia.
Porque é que o movimento anti-guerra na Rússia tem um rosto feminino? Para responder a esta questão teremos de olhar para o desenvolvimento do feminismo russo nos últimos dez anos. Nestes anos, o feminismo na Rússia assistiu a um renascimento. De movimento local e relativamente marginal concentrado em círculos restritos, o feminismo tornou-se num tema debatido amplamente ou até numa espécie de moda. Isto levou a um crescimento do número de grupos feministas e criou um novo tipo de movimento político de mulheres na Rússia.
O feminismo russo na era pós-Soviética
O feminismo russo e o pensamento feminista têm uma longa história com altos e baixos. Começou em meados do século XIX nos contexto das reformas liberais do imperador russo Alexander II. O ponto crucial que pré-determinou todo o desenvolvimento futuro foi o ano de 1930 quando o próprio Estaline proclamou que “a questão das mulheres” tinha sido “resolvida” pelas autoridades soviéticas e não havia mais nenhuma necessidade de existência de organizações independentes de mulheres. Todos os grupos feministas de base na URSS foram demolidos. Apenas no final dos 1970 e nos anos 1980 começaram a emergir novamente – nos círculos dissidentes e intelectuais. Eram grupos pequenos com uma influência muito limitada mas, ainda assim, enfrentaram uma perseguição massiva das autoridades do Estado e dos Serviços Especiais. Por exemplo, quase todas as principais criadoras do almanaque clandestino feminista “As Mulheres e a Rússia” (1979) foram obrigadas a abandonar a URSS sob pressão do KGB.
Depois de 1991, começou um novo capítulo na história do movimento das mulheres russas. Começou com dois acontecimentos significativos – os Fóruns Independentes das Mulheres de 1991 e de 1992 na cidade de Dubna. A Rússia vivia então transformações em larga escala, tanto políticas como económicas. “A democracia sem as mulheres não é democracia” era o slogan destes Fóruns. As suas participantes esperavam que as mulheres se tornassem agentes essenciais da democratização da Rússia pós-Soviética.
Infelizmente, tal só aconteceu parcialmente. A transição para uma economia de mercado gerou novos problemas de género nas sociedades pós-comunistas. Reforçou a desigualdade no trabalho, justificou a comercialização dos corpos das mulheres e causou o declínio dos serviços sociais, o que atingiu principalmente as mulheres e os grupos mais vulneráveis.
Apesar de todos estes problemas, a agenda feminista permaneceu relativamente marginal, como escreveu Anastasia Posadskaya, uma das primeiras académicas a especializar-se em questões de género na Rússia pós-Soviética. De acordo com ela, nos anos 1990, as elites e o público em geral identificavam a emancipação feminina com a ideologia soviética que tinha explorado este tema tanto ao nível interno quanto externo. Orientavam-se agora para novos valores políticos nacionalistas com uma visão tradicionalista dos papéis de género. Por isso, o feminismo não se disseminou; apenas em pequenos círculos se levou a agenda de género a sério. As novas feministas e os Estudos de Género alcançaram uma influência limitada.
Esta situação alterou-se drasticamente nos anos 2010 e podem ter existido muitas razões para esta mudança. Uma delas liga-se à especificidade da viragem conservadora na política interna e externa russa. No início dos anos 2010, as autoridades e os meios de comunicação social russos começaram a promover ativamente a ideia dos “valores tradicionais”. Louvavam o ideal da “família tradicional russa” – heterossexual, multigeracional, com três ou mais filhos. A “família tradicional” tornou-se o reflexo da ideia de um Estado soberano russo – na propaganda, ambos eram apresentados em oposição ao “Ocidente”. Os porta-vozes oficiais e os meios de comunicação social identificavam a Nato e as políticas das Nações Unidas com os movimentos LGBTQ+, o casamento homossexual e os direitos humanos. Qualquer influência externa começou a ser descrita como um perigo para a independência russa e o seu modo de vida, incluindo as suas famílias.
A Rússia deixou de colaborar com organizações internacionais sobre questões de género. Por exemplo, recusou ratificar a Convenção de Istambul de 2011 (a Convenção do Conselho da Europa sobre a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica). Em 2013, as autoridades russas adoptaram leis que proibiam a “promoção de relações familiares não tradicionais” para menores. Isto significava sobretudo as famílias LGBTQ+ apesar do termo ser vago e aberto a outras interpretações.
Ao contrário das expetativas das autoridades, a propaganda obsessiva dos “valores tradicionais” não granjeou muitas simpatias – muitas pessoas viram nela um desejo de interferir nos seus assuntos pessoais como acontecia nos tempos soviéticos. Outros fatores também estimularam interesse relativamente à agenda feminista, por exemplo a famosa performance das Pussy Riot no interior da Catedral de Cristo o Salvador em 2012 ou a ascensão das redes sociais e a disseminação de campanhas online como o #metoo. O início dos anos 2010 também foi tempo de protestos massivos da oposição e de mobilização política um pouco por toda a Rússia. Os grupos de oposição desta altura eram frequentemente tão sexistas e hierárquicos quanto os que eram a favor do governo. Mas o aumento de interesse público na política afetou as mulheres. Muitas envolveram-se nela e, ao mesmo tempo, começaram a refletir sobre as hierarquias nos círculos políticos.
Como resultado disso, o movimento feminista russo começou a crescer – apesar da repressão que se seguiu aos protestos de 2011-2013 e todos os fatores a isso associados. A agenda feminista ultrapassou os círculos locais e chegou aos meios de comunicação social, incluindo os que se dedicavam aos estilos de vida e política e que nunca antes tinham escrito sobre este tipo de tópicos. Eventos sobre feminismo e estudos de género tornaram-se parte inescapável da vida cultural e intelectul em muitas cidades e vilas.
É interessante que as autoridades, durante algum tempo, não olharam para os direitos das mulheres como sendo tão perigosos quanto os outros temas políticos. Para além disso, as políticas feministas continuaram invisibilizadas, já que o Estado e os serviços secretos estavam mais interessados nos homens políticos proeminentes como Alexey Navalny. Contrastando com outros grupos da oposição na Rússia, o feminismo desenvolveu um movimento horizontal sem hierarquias estritas e dirigentes individuais. Parece que, durante algum tempo, as autoridades não o consideraram revolucionário o suficiente. Também não era visto como tão perigoso para os “valores tradicioansi” como, por exemplo, os direitos das pessoas gay. Assim, os eventos feministas podiam acontecer até em instituições estatais como bibliotecas, museus e galerias de arte. Eu própria fui uma das organizadoras de um festival feminista numa das maiores bibliotecas estatais de Moscovo em 2017. Ativistas feministas, académicas especialistas em temas de género e bloggers que se dedicavam a questões sexuais participaram e não enfrentaram qualquer pressão da administração da biblioteca ou das autoridades locais.
Dois efeitos da disseminação do feminismo nos anos 2010
Esta disseminação da agenda feminista na Rússia teve dois efeitos principais. O primeiro foi o crescimento do número de organizações de base feministas. De acordo com a investigação que tenho vindo a fazer desde 2019, o número de organizações feministas de base tem vindo a crescer. No início da guerra, mais de 45 destes grupos funcionavam por todo o país. Digo “mais de 45 grupos” porque sei que há vários destes grupos no Cáucaso do Norte. Trabalham de forma secreta, dado que as suas vidas estariam ameaçadas se revelassem as suas identidades e não tenho protocolos de segurança que permitam tentar contactá-las de forma a conhecer mais detalhes. Muitos grupos feministas estão baseados em Moscovo e São Petersburgo mas não só. Há grupos ativos em Novosibirsk e Kaliningrado, Krasnodar e Khabarovsk, Murmansk e Ulan-Ude – e muitos outros lugares.
O segundo efeito é muito mais complexo e necessita de uma investigação mais alargada. Calculo que a disseminação da agenda feminista criou um nova compreensão da capacidade de ação política das mulheres na Rússia moderna. Apesar da Rússia ter uma história substancial de participação das mulheres tanto nos tempos soviéticos como a seguir, as mulheres não alcançaram uma representação adequada nos mais elevados níveis da administração do Estado. Sabemos que apenas em casos isolados mulheres se tornaram ministras ou ocuparam outras posições com influência na tomada de decisões. Durante muito tempo, a política e particularmente os assuntos militares eram um “negócio não-feminino” (‘неженское дело’) para muitos russos e para as próprias mulheres.
A agenda feminista tornou-se uma ferramenta poderosa para a politização das mulheres e alcançou até aquelas que inicialmente tinham pouco interesse na política. Em geral, os russos têm um atitude negativa relativamente a qualquer coletividade, associando-a à politização forçada dos tempos soviéticos. As autoridades russas usaram este individualismo durante anos, mostrando vezes sem conta que a “pessoa média” não pode mudar nada e se deve manter afastada do “negócio sujo” da política. O regime tem-se apoiado na apatia e na indiferença da população. Assim, não é surpreendente que, na Rússia, a opinião de que é impossível influenciar o Estado seja bastante comum – as pessoas acreditam que apenas conseguem influenciar o círculo familiar e os amigos mais próximos. O feminismo com a sua fórmula “o pessoal é político” tornou-se decisivo nestas circunstâncias. Muitas ativistas feministas que conheci, chegaram ao feminismo à procura de respostas acerca dos seus corpos e de assuntos domésticos e, mais tarde, estas questões levaram-nas a discussões acerca da democracia representativa, da ditadura, da reconsideração da política e do protesto e do seu lugar neles.
Como resultado disso, hoje em dia vemos mulheres a organizar a resistência. E estas mulheres demonstram absoluta confiança de que a sua voz é importante e de que deve ser levada a sério. Não hesitam em juntar-se, defenderem-se e criticar os políticos e jornalistas que as ignoram ou subestimam. Infelizmente, muitas delas estão em grande perigo. A ameaça não vem apenas do Estado russo, que reprime os cidadãos que protestem contra a guerra ou que revelem a verdade acerca dela. Ainda antes da guerra, as feministas russas e as mulheres politicamente ativas recebiam centenas de ameaças de morte de cidadãos comuns, zangados porque, ao falarem de estereótipos de género, de violência de género ou ao participarem na política, estariam a violar a ordem patriarcal tácita. Muitas pessoas com projeção pública desumanizavam as feministas, chamavam-lhes “demónios” e “animais” ou comparavam-nas com os Nazis.
Temo que os soldados russos que, mais tarde ou mais cedo, vão regressar da Ucrânia partilhem desta atitude quando descobrirem que muitas mulheres russas não os veem como heróis e salvadores mas amaldiçoam-nos e chamam-lhes criminosos de guerra. Estes homens, alguns dos quais são responsáveis por verdadeiras atrocidades no Oblast de Kiev, não irão tolerar estas vozes – e podem querer vingar-se daquelas que revelaram a verdade. E não sei se a opinião pública russa, acostumada a esta violência e na sua maior parte hostil às feministas, os vai confrontar.